quinta-feira, fevereiro 21, 2008

A soneca da alforreca

Este sinal, fotografado na vizinhança de uma praia australiana, adverte para a presença de alforrecas particularmente perigosas, da espécie Chironex fleckeri. Esses bicharocos são cubomedusas, mas muito maiores do que aquelas de que tenho falado aqui recentemente. Como se pode ver nesta fotografia, possuem um sino com um diâmetro comparável ao de uma cabeça humana. Já agora, não tentem fazer em casa o que estão a ver nessa imagem, agarrar assim nesses bichos, com as mãos, é só para profissionais. Cada um dos 60 tentáculos que ostenta, e que pode atingir três metros de comprimento, possui cerca de 5000 células urticantes chamadas nematocistos. Os nematocistos reagem a estímulos químicos quando entram em contacto com peixes, camarões, ou mesmo humanos, funcionando então como pequenos ferrões que injectam veneno altamente tóxico. As C. fleckeri não encaram os humanos como presas, e se nos mantivermos parados usam a visão para nos evitarem, mas um humano a nadar pode lançar-se inadvertidamente contra elas. O contacto com três metros de tentáculos são suficientes para matar um humano adulto.. Face ao razoável perigo que representam para os banhistas, não admira que estas cubomedusas fossem escolhidas como cobaias para carregarem pequenos transmissores, para que os seus padrões de actividade diária pudessem ser conhecidos em maior detalhe. Esse estudo revelou um dado curioso: estas alforrecas são grandes dorminhocas. [... ler mais]

O artigo que descreve o sono das cubomedusas é da autoria de Jamie Seymour, Teresa Carrette, e Paul Sutherland, tendo sido publicado em 2004 na revista The Medical Journal of Australia (ref1). É um artigo muito curto, com restrições quanto ao uso de imagens, mas podem acedê-las através do apontador fornecido com a referência no fim da contribuição. Ora o senhor Seymour e os seus colegas encontraram um certo número de contrariedades na sua tarefa de colocar emissores nas alforrecas. Com animais como os peixes é simples, faz-se uma incisão, coloca-se um emissor na cavidade corporal, fecha-se o corte, e pronto, basta seguir o animal. Ora, como os autores referem:

Com as alforrecas não é assim tão simples. Em primeiro lugar, as alforrecas não possuem uma cavidade corporal (possuem apenas duas camadas de células, uma ectoderme e uma endoderme, com uma camada não celular, a mesogleia, entre elas). Em segundo lugar, suturar as alforrecas não é fácil. Na verdade, é impossível!
Mas os cientistas lá se desenrascaram:
Após muitas tentativas falhadas para fixar transmissores, finalmente deparámos com um método simples mas efectivo. Colámo-los usando histoacrilíco, uma supercola usada por cirurgiões. Tudo o que é preciso é apanhar uma cubomedusa sem ser picado (uma arte em si mesma!), colar-lhe um transmissor, libertá-la e segui-la com um microfone subaquático direcional.

Os autores verificaram então que estas alforrecas eram muito activas, mas só durante o dia, das 6 da manhã às 3 da tarde. Durante esse período movimentavam-se em linha recta cobrindo qualquer coisa como 212 metros numa hora. Só que das 3 da tarde às seis da manhã, ou seja durante 15 horas, os animais quase que se imobilizavam, percorrendo em média 10 metros ou menos numa hora. Tratava-se de uma fase de relaxamento em que as cubomedusas permaneciam inactivas em contacto com o fundo do mar. Os cientistas conseguiam mesmo acordá-las, batendo no fundo do mar, ou apontando-lhes luzes, o que as levava a nadar um bocado, mas voltavam pouco depois à inactividade em repouso sobre a areia. Os bichos gostam mesmo de dormir.

Os autores do artigo especulam que o repouso poderá ter a ver com o facto de que a um animal que depende da visão será preferível conservar energia e evitar predadores (tartarugas marinhas), que não consegue ver durante a noite.

Já agora, um aparte sobre estes bichos, e o perigo que representam. Embora teoricamente uma destas cubomedusas possa matar 60 seres humanos, é preciso que a pessoa se enrole nos tentáculos. Nos últimos 100 anos houve cerca de 100 mortes registadas por envenenamento devido a Chironex fleckeri na Austrália. Na maioria das vezes, contudo, o contacto é relativamente diminuto, embora extremamente doloroso. Uma vez "nematocistozados" por uma cubomedusa nunca, mas nunca mesmo, tentem aplicar álcool na zona afectada. Quaisquer nematocistos que não tenham disparado vão fazê-lo de imediato. Não tentem também remover logo os tentáculos, ou bocados de tentáculos, em contacto com a pele, pois nematocistos que não tenham disparado poderão fazê-lo. Há que matar primeiro os nematocistos e a forma de o fazer sem que disparem é regar tudo generosamente com o vulgar vinagre de cozinha, aquele que se coloca nas saladas. Isso mesmo, na Austrália o vinagre faz parte dos estojo de primeiros socorros dos banhistas. Só depois de regar a zona afectada com vinagre, se devem remover os tentáculos, e aplicar antivenenos.

Como tenho vindo a descrever nesta série de contribuições, aquela coisa que parece um cubo de gelatina com tentáculos, é na verdade uma caixinha de surpresas. As cubomedusas veêm, namoram, e dormem. Tudo comportamentos que tendemos a ligar com a presença de um cérebro. Falarei disso em contribuições posteriores.

Ficha técnica
Sinal que adverte para a presença de cubomedusas obtido via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Jamie E Seymour, Teresa J Carrette, Paul A Sutherland (2004). Do box jellyfish sleep at night? The Medical Journal of Australia, Volume 181, Number 11/12, Page 707. HTML.

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