sábado, setembro 30, 2006

É fácil trepar e manter-se agarrado com adesivos nas patas

Eis-me de regresso de férias. Para voltar às lides nada melhor que algumas das mais fascinantes criaturas à face da Terra: as tarântulas. A imagem mostra uma fêmea de Aphonopelma seemanni, uma aranha que se pode apelidar de belíssima. Possui umas listras creme ao longo das patas e uma pelagem que sob a luz apropriada ganha uma tonalidade azul. A escala na imagem corresponde a 5 milímetros, pelo que esta é uma aranha bem grandinha. As aranhas utilizam um sistema de aderência que se baseia nas forças de van der Waals geradas por uma míriade de pequenos pêlos que possuem nos pés. Esse mecanismo é complementado com pequenas garras que se agarram ao substrato. São essas pequenas garras e pés peludos que permitem às aranhas treparem às paredes e ficarem agarradas nos tectos. Os cientistas descobriram agora que uma aranha grande como a Aphonopelma seemanni recorre a outro truque: usa adesivos. Essa aranha produz secreções fibrosas, a partir de uma espécie de pequenas mangueiras existentes nos seus pés, que lhe permitem aderir às superfícies. [... ler mais]

As propriedades adesivas das aranhas foram descobertas por Stanislav Gorb e colegas que descrevem o achado na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As aranhas tecem seda com estruturas especializadas conhecidas como fiandeiras abdominais, uma característica que define as criaturas, e esta é utilizada para capturar presas, protecção, reprodução e dispersão.

As fiandeiras situam-se no final do abdómen, antes do ânus. O seu número pode variar entre um a três pares. A seda das aranhas é produzida nas glândulas sericígenas, e sai através de tubos minúsculos, as fúsulas, que se localizam nas extremidades das fiandeiras e nos seus declives laterais. Eis aqui uma imagem de uma aranha da espécie Araneus diadematus, atarefada a construir ou reparar uma teia, onde se podem ver bem a origem dos fios de seda e a posição das fiandeiras.

Ora as tarântulas são capazes de produzir seda noutros locais que não na extremidade do abdómen.
Mostramos aqui que as tarântulas-zebra (Aphonopelma seemanni) da Costa Rica também secretam seda dos seus pés para providenciar adesão durante a locomoção, permitindo a estas aranhas agarrar-se a superfícies verticais lisas. A nossa descoberta de que a seda é produzida pelos pés fornece uma nova perpesctiva acerca da origem e diversificação da seda das aranhas.

A imagem ao lado mostra o rasto de fibras, indicadas pelas setas brancas, deixadas por uma aranha ao deslizar por uma superfície vertical de vidro abaixo. A seta negra indica a direcção do deslizamento. As grandes manchas brancas na parte direita da imagem são as partes distais dos tarsos da aranha (extremidades dos pés). Têm aquele aspecto por estarem cobertas de pêlos e pelos pequenos espigões que produzem seda. A escala é meio milímetro. A seda é excretada como um fluido viscoso que solidifica colando o fio ao substrato, permitindo à aranha agarrar-se mesmo a algo tão liso como vidro.

Embora o artigo seja muito curto os autores tecem algumas considerações sobre se a produção de seda nos pés não seria a condição ancestral nas aranhas, que teria sido perdida nas outras espécies. Alternativamente sugerem que poderia ser algo que surgiu apenas neste grupo de aranhas mais pesadas para evitar quedas que poderiam ter resultados catastróficos (e aqui vem-me ao espírito um onomatopaico splosh!). Esta é uma questão que, ainda segundo os autores, poderá ser resolvida com estudos genéticos para ver se as proteínas das sedas dos tarsos e das fiandeiras são codificadas pela mesma família de genes.

O extraordinário nesta história é que, como indicado nos news@nature.com da autoria de Narelle Towie na Nature (ref2), a descoberta foi em grande parte fruto do acaso. Os cientistas, do instituto Max Planck para a Ciência do Desenvolvimento, estavam a estudar a locomoção das aranhas, e durante uma pausa um técnico esqueceu-se da câmara de filmar ligada. Narelle Towie cita então um dos autores do estudo, Stanislav Gorb:
"Quando voltámos de uma pausa, e vimos o filme, encontrámos o resíduo na área do vidro onde a aranha tinha estado a andar."

A Aphonopelma seemanni é particularmente fotogénica, e uma galeria de imagens pode ser encontrada aqui. É um animal que se pode manter em casa num "aranhário", se bem que seja bastante agressiva e os entusiastas recomendem experência com espécies de tarântulas mais dóceis antes de adquirir uma.

Para quem aprecie um animal de estimação que não necessite de muitos cuidados, apenas um grilo vivo de tempos a tempos, as tarântulas são o ideal. Em especial porque há muito por onde escolher. Afinal quem não gostaria de possuir uma Avicularia minatrix, uma Brachypelma smithi, ou ainda uma Pamphobeteus platyomma. Mas a que realmente me deixa tentado é a Aphonopelma bicoloratum. Completamente irresistível.

Ficha técnica
Imagem de Araneus diadematus retirada desta página da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Stanislav N Gorb, Senta Niederegger, Cheryl Y Hayashi, Adam P Summers, Walter Vötsch and Paul Walther (2006). Biomaterials: Silk-like secretion from tarantula feet. Nature 443, 407. Laço DOI.
(ref2)Narelle Towie (2006). Tarantulas spin silk from their feet. Heavy spiders use a little extra glue to get around. news@nature.com. Laço DOI.

sexta-feira, setembro 29, 2006

O circo dos sem-espinha


Os blogs de ciência em inglês organizam regularmente aquilo que chamam Blog Carnivals, que se poderia traduzir por Feiras de Blogs. De tanto em tanto tempo um blog coloca uma lista de artigos publicados noutros blogs durante esse período, e os outros blogs fazem publicidade ao evento. Uma destas feiras de blogs é o Circus of the Spineless. Estou aqui a falar nele não só pelas contribuições, que são interessantes, mas especialmente por causa da apresentação. Esta semana o evento está ancorado no Deep-Sea News, de Craig McClain e Peter Etnoyer, o blog onde eu vou para me informar de tudo o que se passou, se está a passar, ou se irá passar nas profundezas oceânicas.

A apresentação está fenomenal (e eu até nem aprecio tatuagens). Aconselho-vos a visitarem. Vão gostar, afinal não tem espinhas.

Ficha técnica
Imagem adaptada de um original que pode ser encontrado na edição em linha da 20th U.S. edition of Gray's Anatomy of the Human Body, publicada em 1918.

terça-feira, setembro 26, 2006

Do passado distante para as luzes da ribalta

A National Geographic tem um artigo excelente sobre a pequena bebé afarensis. Aprendi lá, por exemplo, que ela foi encontrada numa região chamada Dikika, que significa mamilo no dialecto afarense. É uma coincidência curiosa e de certa forma apropriada. Embora seja também designada como o bebé de Lucy, isso não é de facto possível, pois a pequenina afarensis terá vivido umas dezenas de milhares de anos antes de Lucy. Foi no entanto encontrada a apenas cerca de 10 km da sua parente adulta e pertence à mesma espécie. Os investigadores que a encontraram baptizaram-na de Selam que significa paz, que é o sentimento que evoca a visão artística da pequenina ao colo da mãe. Particularmente tocante, pode ser vista aqui numa página que permite o acesso a um pequeno filme sobre a descoberta. Recomendo particularmente os dois últimos segmentos, onde Chris Sloan, editor chefe da National Geographic, manuseia uma reconstrução da bebé. A pequenez da criança em questão percebe-se de forma muito clara nesta imagem. É realmente minúscula. A National Geographic possui ainda este artigo, e este filme sobre a descoberta. [... ler mais]

Mas a própria Nature tem algum material de livre acesso sobre o bebé de Dikita. Há um artigo de Bernard Wood (ref1), acessível para consulta livre, cujo título e resumo, embora curtos, mostram claramente a importância do achado:

Uma pequena trouxa preciosa
O esqueleto com três milhões de anos de uma criança de três anos fornece um recurso notável para compreender o desenvolvimento de um antepassado humano que parece ter tido a possibilidade de quer caminhar quer trepar às árvores.

Bernard Wood refere que embora não seja a primeira criança de hominines primitivos a ser descoberta, pois a criança de Taung foi descoberta há 80 anos, se trata de um achado notável por ser um esqueleto quase completo. Refere ainda a grande confiança que se tem quanto ao período em que viveu, pois a criança foi achada em sedimentos com vestígios de cinza vulcânica cuja idade é conhecida com exactidão. A espécie a que a criança pertence é também identificada com grande confiança pois o rosto da Selam mostra as características que distinguem o afarensis de fósseis de outros hominines encontrados em rochas com idades semelhantes. A questão dos 3 anos de idade não é tão precisa. Usando tomografia foi possível ver a posição dos dentes definitivos, ainda por emergir. Comparando esta dentição com a de crianças e chimpanzés a correspondência mais próxima foi com chimpanzés de três anos. Não é contudo de esperar que os afarensis seguissem o mesmo desenvolvimento dos chimpanzés. Trata-se por isso de uma estimativa plausível mas não totalmente segura.

A grande questão é exactamente a da locomoção. As omoplatas são mais parecidas com as dos gorilas que com as dos humanos modernos, e os ossos do único dedo completo curvam como os dos chimpanzés. A Selam mostra ainda órgãos do equilíbrio no ouvido mais próximos dos dos chimpanzés que dos dos humanos modernos. Assim os ombros, dedos e orgãos do equilíbrio mostrariam segundo Bernard Wood ser pouco provável que o Australopithecus afarensis restringisse a sua locomoção ao andar bípede. Há no entanto quem discorde. Owen Lovejoy da Kent State University, especialista em locomoção humana, tem um artigo no blog da Scientific American. Numa tradução livre da parte em que Owen Lovejoy discute a locomoção:
Apesar da omoplata parecer, neste estádio da preparação, ter algumas semelhanças com a do gorila, difere de forma marcada da do chimpanzé, e mostra alguma semelhanças marcantes com a omoplata humana (o que os autores também notam). Algumas das suas proporções são claramente intermédias entre os antropóides e os humanos modernos, já nesta idade geológica de mais de 3 milhões de anos!

Os vários ênfases são do autor e não meus.
Lovejoy faz em seguida uma análise crítica muito detalhada de alguns pontos incluídos no artigo de Bernard Wood, no que se refere à curvatura dos dedos da mão dos A. afarensis, mas também no que se refere ao tipo de postura que o animal podia adoptar. Segundo a leitura que faço do artigo de Lovejoy ele defende que o A. afarensis era claramente um bípede, e que embora as pressões evolutivas fossem mais fortes sobre os membros inferiores, já claramente humanos, esse estilo de vida era também já óbvio na metade superior do corpo. É estimulante ver toda esta controvérsia e discussão logo após o artigo que descreve este espécime. Estas e outras questões vão ser debatidas exaustivamente nos tempos mais próximos, mas também num futuro menos imediato, pois os dados são de certa forma preliminares. Os cientistas continuam a limpar os restos da pequenina Selam dos sedimentos que a aprisionam.

Referências
(ref1) Bernard Wood (2006). Palaeoanthropology: A precious little bundle. Nature 443, 278-281. Laço DOI.

quinta-feira, setembro 21, 2006

A bebé da Lucy

Há cerca de 3.3 milhões de anos o antigo Rio Awash, no que hoje é a região de Afar na Etiópia, foi palco de uma grande cheia. Entre as vítimas dessa grande cheia encontrava-se uma infeliz criança por volta de 3 anos de idade, do sexo feminino, de uma espécie chamada Australopithecus afarensis. Durante milhões de anos os restos mortais da criança permaneceram enterrados nos sedimentos até que em Dezembro de 2000, Tilahun Gebreselassie, membro de uma expedição do Instituto Max Plack para a Antropologia Evolucionária, de Leipzig, na Alemanha, viu uma pequena face a espreitar numa encosta poeirenta. Os cientistas da expedição, liderados por Zeresenay Alemseged passaram os cinco anos seguintes a retirar, grão a grão, a matriz de sedimento que envolvia os ossos. Já se conheciam adultos desta espécie, um deles, a denominada Lucy é mesmo um ícone da antropologia, mas esta é a primeira criança A. afarensis a ser descoberta. [... ler mais]

Numa tradução livre do resumo do artigo de Zeresenay Alemseged e colegas na Nature (ref1):

Compreender as mudanças no dedesenvolvimento ontogenético é fulcral para o estudo da evolução humana. Com a excepção dos neandertais, os padrões de crescimento dos hominines fósseis não foram estudados de forma detalhada porque o registo fóssil não possui espécimes que documentem o desenvolvimento craniano e pós-craniano em estádios ontogenéticos jovens. Descrevemos aqui um esqueleto juvenil parcial bem preservado com 3.3 milhões de anos de Australopithecus afarensis descoberto na área de pesquisa de Dikika na Ethiopia. O crânio da suposta fêmea, de aproximadamente três anos, mostra que a maioria das características diagnósticas da espécie são evidentes mesmo neste estádio inicial do desenvolvimento. A descoberta inclui muitos elementos do esqueleto previamente desconhecidos do registo dos hominines do Pliocénico, incluindo um osso hióide que tem a morfologia típica dos antropóides africanos. Os pés e outra evidência do membros inferiores fornecem evidência clara para locomoção bípede, mas as omoplatas, que se assemelham às dos gorilas, e as falanges longas e curvas na mão levantam novas questões sobre a importância do comportamento arborícola no reportório locomotor do A. afarensis.

Trata-se de uma descoberta importante. Quando voltar de férias, lá para o final de Setembro, talvez volte a ela. Para lá da questão da arborealidade o osso hióide sugere que estes animais teriam sacos-de-ar como os gorilas e orangotangos para ajudar nas vocalizações.

Referências
(ref1) Zeresenay Alemseged, Fred Spoor, William H. Kimbel, René Bobe, Denis Geraads, Denné Reed and Jonathan G. Wynn (2006). A juvenile early hominin skeleton from Dikika, Ethiopia. Nature 443, 296-301. Laço DOI

quarta-feira, setembro 20, 2006

A lula vampira do inferno

No local onde costumo passar as minhas férias encontrei alguma da literatura que trouxe comigo dois anos atrás. Entre livros e artigos vários encontrava-se um estudo referente a uma criatura com um dos nomes mais inspirados que existem, o Vampyroteuthis infernalis. Significa literalmente a lula vampira do inferno. Foi descoberto e descrito em 1903, pelo biólogo marinho alemão Carl Chun, na expedição Valdivia no Oceano Atlântico, e um desenho do animal foi feito pelo artista da expedição, um senhor chamado Rübsamen. Embora o Vampyroteuthis não ande por aí a sugar o sangue de outras criaturas, e portanto não seja realmente um vampiro, o nome é estranhamente apropriado: aquela capa púrpura entre os tentáculos é definitivamente vampírica, bem como o bico esbranquiçado, e os olhos grandes. Imagino a perplexidade de Carl Chun a ver o primeiro animal da espécie e a perguntar-se o que seria aquilo. [... ler mais]

A ilustração é razoavelmente próxima do aspecto do animal vivo, que se mostra abaixo.


A V. infernalis é uma espécie que se distribui por uma vasta área, tendo sido já encontrados exemplares no Atlântico, Pacífico e Índico. A relação de parentesco desta lula vampira com os outros cefalópodes modernos é algo distante. É parente das lulas e polvos, partilhando algumas características de ambos os grupos. Na páginas da tree of life (ref2) é apresentado como mais próximos do polvos que das lulas, pelo que talvez devesse ser chamado o polvo vampiro dos infernos. Qualquer que seja o parentesco é um animal a que não se fica indiferente, e o modo de vida dele é também interessante. O Vampyroteuthis vive numa região do oceano onde a quantidade de oxigénio é muito baixa, e tem um metabolismo muito reduzido, estando perfeitamente adaptado a uma vida de predador de pequenos animais, pouco activo, e que economiza a energia ao máximo. O animal tem uma consistência algo gelatinosa e muito pouca massa muscular, pelo que durante muito tempo se julgou que practicamente não nadaria e se deixaria arrastar. Sabe-se agora que consegue apesar de tudo nadar depressa com as abas semelhantes a barbatanas durante curtos períodos de tempo.

A lula vampira tem orgãos bioluminiscentes dispersos no corpo (mas não na "capa") que são utilizados para camuflagem. A luz do Sol à superfície faz com que nas profundezas, ao olhar para cima, se veja algo que parece um céu estrelado. Qualquer sombra nesse céu poderia dar uma indicação a predadores situados abaixo. Os orgãos bioluminiscentes produzem por isso uma luz comparável à que penetra da superfície e ajudam a camuflar o animal. Para além deste tipo de defesa algo passivo, a lula vampira, quando em perigo iminente, usa também uma abordagem mais activa, embora diferente da usual noutros cefalópodes. Os cefalópodes que vivem próximo da superfície lançam nuvens de tinta escura para iludir os predadores. A infernal lula vampira, pelo contrário, usa a luz. Estas estratégias defensivas, que empregam o embuste e a bioluminescência, são descritas em detalhe num artigo de Bruce Robison e colegas na revista Biological Bulletin (ref1). Numa tradução livre do resumo:

O cefalópode arcaico das profundezas marinhas Vampyroteuthis infernalis ocorre em águas escuras e pobres em oxigénio abaixo de 600 metros na baía de Monterey, na Califórnia. Exemplares vivos, recolhidos de forma cuidadosa com um veículo operado remotamente, e transportados rapidamente para um laboratório na costa, revelaram dois mecanismo de expressão de bioluminescência nesta espécie até aqui por descrever. No primeiro, é produzida luz por um novo tipo de orgão localizado nas pontas de todos os seus oito braços. No segundo, um fluido viscoso contendo partículas luminosas microscópicas é libertado da ponta dos tentáculos para formar uma nuvem brilhante em torno do animal. Ambos os modos de produção de luz estão aparentemente ligados a estratégias contra predadores. O uso das luzes das pontas é induzido imediatamente por um estímulo devido a contacto, enquanto o o limiar para a expulsão do fluido luminoso é muito mais elevado. Celenterazina and luciferase são os precursores químicos da produção de luz. Este artigo apresenta observações da estrutura e operação dos orgão na ponta dos braços, as características da nuvem luminosa, e como a luz que produzem é incorporada nos padrões de comportamento.


Mostra-se à esquerda os orgãos que produzem a luminosidade nas pontas dos tentáculos. As zonas escuras correspondem às posições das ventosas. Na direita estão indicadas por setas as regiões que produzem a tal nuvem luminosa. As linhas que identificam a escala correspondem a um milímetro. O animal não é muito grande, o comprimento total é inferior a 30 centímetros. Um filme que ilustra a expulsão dessa nuvem luminosa pode ser visto nas páginas do Monterey Bay Aquarium Research Institute (MBARI), aqui. Todos estes efeitos luminosos se destinam a distrair, confundir, e desorientar, potenciais predadores e permitir que o animal se afaste para não muito longe, evitando ser comido. Para um animal com um nome tão sugestivo a vida apesar de tudo não se afigura fácil.

Ficha técnica
As imagens e o filme referido nesta contribuição são cortesia do Monterey Bay Aquarium Research Institute (MBARI), e podem obter-se nesta página.
Alguma da informação apresentada nesta contribuição foi retirada das páginas da tree of life. Ver ref2 abaixo.

Referências
(ref1) Bruce H. Robison, Kim R. Reisenbichler, James C. Hunt and Steven H.D. Haddock (2003). Light production by the arm tips of the deep-sea cephalopod Vampyroteuthis infernalis. Biological Bulletin 205: 102-109. Resumo e PDF.
(ref2) Young, Richard E. 1998. Vampyromorpha Robson, 1929. Vampyroteuthis infernalis Chun, 1903. Vampyroteuthis, The Vampire Squid. Version 01 January 1998 (under construction). Vampyroteuthis infernalis in The Tree of Life Web Project.

domingo, setembro 17, 2006

Não me incomodem, quero dormir

Como referi na contribuição sobre as preguiças aquáticas do género Thalassocnus, existem 6 espécies de preguiças actualmente na natureza. Dessas seis espécies cinco são encontradas no Brasil. Aliás, uma delas, a preguiça de coleira, Bradypus torquatus, apenas se encontra no Brasil, na Mata Atlântica. A sexta espécie é a preguiça anã, Bradypus pygmaeus, que existe apenas na pequena ilha Escuda de Veraguas, na costa oeste do Panamá. Pesa cerca de 40% menos que as preguiças comuns (que em geral pesam menos de 5 kg). Esta pequena preguiça só recentemente foi filmada. Ora a preguiça em questão, quando pela primeira vez se viu face a face com um ser humano com uma máquina de filmar, teve uma reacção em tudo digna do seu nome. [... ler mais]

Confrontada com tão estranha criatura, a preguiça não ficou impressionada, nem entrou em pânico. Simplesmente adormeceu. O que se passou pode ser visto neste filme, cortesia da National Geographic. Infelizmente não encontrei nenhuma foto sem direitos de autor da preguiça anã, a foto ao lado é do bicho-preguiça comum, Bradypus variegatus. A preguiça anã só muito recentemente foi descoberta, e só em 2001 Anderson e Handley publicaram a descrição da espécie na revista Proceedings of the Biological Society of Washington (ref1). Trata-se de um animal que à semelhança da brasileira preguiça de coleira, Bradypus torquatus, se encontra seriamente ameaçada de extinção.

Referências
(ref1) Anderson, R. P. and C. O. Handley (2001). A new species of three-toed sloth (Mammalia: Xenarthra) from Panama, with a review of the genus Bradypus. Proceedings of the Biological Society of Washington, 114(1): 1-33.

quinta-feira, setembro 14, 2006

A urvogel das quatro arqueopterixes

Esta é uma imagem do fóssil da urvogel, termo alemão para "primeira ave". Trata-se de uma emblemática criatura, do tamanho de uma gralha, cujo nome científico é Archaeopteryx lithographica. Este fóssil teve uma importância histórica imensa na aceitação da teoria da evolução. O arqueopterix foi descoberto em 1861, dois anos apenas após a publicação da "Origem das Espécies" de Charles Darwin. Este ser, com penas e asas como as aves, mas com dentes e uma longa cauda como os répteis, continua a ser uma das primeiras imagens que ocorre quando se pensa na evolução. O mais extraordinário é que, ao fim de 145 anos, ainda se continuem a descobrir coisas novas nesta criatura. Archaeopteryx quer dizer asa antiga, mas como é óbvio o animal teria mais que uma. A questão é exactamente quantas mais. [... ler mais]

Mostra-se em baixo uma reconstrução do arqueopterix que ilustra o aspecto que se admitia para este animal.

Notem os dedos com garras nas asas. O modo de vida desta primeira ave era motivo de alguma controvérsia. Alguns investigadores defendiam que se trataria de um animal que se deslocaria correndo no solo e voando ocasionalmente. Outros investigadores propunham um modo de vida arborícola, deslocando-se entre os ramos e voando de árvore em árvore, como se mostra nesta imagem do artista Luis Rey. Ora todas essas reconstituições do animal têm que ser revistas. Num artigo na revista Paleobiology (ref1) Nick Longrich descreve as penas nos membros posteriores do arqueopterix. Numa tradução livre do resumo:

Este estudo examina a morfologia e função da plumagem dos membros posteriores na Archaeopteryx lithographica. As pernas do espécime de Berlim encontram-se cobertas de penas, que se estendem desde a superfície cranial da tíbia às margens quer da tíbia quer do fémur. Estas penas exibem características de penas de vôo e não de penas de contorno, incluindo assimetria, raques curvas, e um padrão de sobreposição estabilizador. Muitas dessas características facilitam o gerar de impulso nas asas e cauda das aves, sugerindo que os membros posteriores agiam como um aerofólio.

A preparação que tinha sido feita para o estudo original do arqueopterix obscureceu alguns vestígios dessas penas das pernas. Elas ainda são visíveis, mas não tão evidentes como as penas dos braços. A barriga da perna e a coxa do arqueopterix estariam cobertas por penas semelhantes às dos braços, ou seja penas de vôo, e com uma disposição semelhante. O arqueopterix teria por isso quatro asas!
Apresenta-se uma nova reconstrução do Archaeopteryx na qual os membros posteriores formam aproximadamente 12% da área total do aerofólio. Dependendo da sua orientação, os membros inferiores poderiam reduzir a velocidade de descida por 6% e o raio de viragem por 12%. A presença da forma corporal com quatro asas quer no Archaeopteryx quer nos membros basais dos Dromaeosauridae indica que o antepassado comum a ambos utilizava os membros anteriores e posteriores para gerar impulso. Esta descoberta sugere que queda livre (pára-quedismo) das árvores e o planar precederam a evolução do vôo das aves.

A reconstrução do artigo é muito semelhante à proposta para um pequeno dromeosauro, o Microraptor gui, que se pode ver neste modelo no American Museum of Natural History, de Nova Iorque.

Uma ilustração desses microraptores, muito mais espectacular, pode ser vista nesta imagem da autoria de Luis Rey. As penas das pernas no arqueopterix seriam ligeiramente menores que as do microraptor. Longrich sugere na verdade um modelo que não se aproxima tanto de um biplano, as asas das pernas seriam mantidas numa posição tal que funcionariam um pouco como a cauda das aves modernas.

Quando se descobriu este arranjo no microraptor pensou-se que se trataria de uma "experiência" que teria pouco a ver com a evolução do vôo das verdadeiras aves. Ora os estudos filogenéticos sugerem que as aves modernas partilharão um antepassado comum mais recente com o arqueopterix que com os microraptores, logo o antepassado comum mais recente dos microraptores e do arqueopterix, que tinha quatro asas, eram também antepassado das aves modernas. O vôo nas aves terá começado assim com quatro asas e com animais que eram essencialmente planadores.

Para terminar, aconselho vivamente a visita da série de imagens intitulada New Chinese Revolution, de Luis Rey, que ilustram a verdadeira revolução que houve na nossa visão dos dinossauros nos últimos anos. Neste momento, encaramos os dinossauros terópodes como animais muito semelhantes às aves, muitos deles sendo inclusivamente capazes de voar.

Ficha técnica
Todas as imagem retirada da Wikimedia Commons, aqui, aqui e aqui.

Referências
(ref1) Longrich, N. (2006). Structure and function of hindlimb feathers in Archaeopteryx lithographica. Paleobiology 32(3):417-431. Laço DOI

quarta-feira, setembro 13, 2006

A preguiçar nos fundos oceânicos

Aproveitando o facto de ter conseguido acesso à internet durante as férias, resolvi colocar uma contribuição que tinha de reserva sobre mamíferos marinhos. Pode parecer estranho falar em mamíferos marinhos e colocar uma imagem de um bicho-preguiça, neste caso a variante panamiana da vulgar preguiça de três dedos, de seu nome científico Bradypus variegatus infuscatus, mas há uma boa razão para isso. Embora hoje existam apenas seis espécies de preguiças arborícolas, quatro delas no género Bradypus (preguiças de três dedos), e duas no género Choloepus (preguiças de dois dedos), num passado não muito longíquo existiam inúmeras espécies destes animais a calcorrearem as Américas. Digo calcorrear porque muitas espécies habitavam no solo, e não nas árvores como as preguiças que ainda sobrevivem. As preguiças terrícolas apresentavam-se num sem número de tamanhos, desde o pequeno como as preguiças actuais (menos de um metro, menos de 10 kg) até ao gigantesco, maior que os elefantes actuais. [... ler mais]

Uma dessas preguiças terrícolas era a preguiça de Shasta, do género Nothrotheriops, que pode ser vista aqui, cortesia do blog de Carl Buel. As preguiças de Shasta desapareceram há menos de 11,000 anos e foram contemporâneas do homem nas Américas. Se repararem bem, na imagem em que a Nothrotheriops aparece sozinha, também cortesia de Carl Buel, vemos que se trata de um animal que só poderemos apelidar de estranho. Notem em particular a postura dos pés. Ora, algumas parentes muito próximas da Nothrotheriops, que viviam naquilo que é hoje o Peru, eram ainda mais invulgares: não eram arborícolas, nem terrícolas, eram aquáticas. Essas criaturas pertencem ao género Thalassocnus, e foram descritas pela primeira vez em 1995 num artigo de Christian de Muizon e Gregory McDonald na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As preguiças terrícolas (Gravigrada, Xenarthra) conhecem-se desde o Oligocénico médio ou tardio até ao Pleistocénico tardio na América do Sul, e do Miocénico tardio até ao Pleistocénico tardio na América do Norte. São de tamanho médio a gigantesco e possuem hábitos terrestres. A descoberta de restos abundantes e bem preservados de uma nova preguiça (Thalassocnus natans), em depósitos marinhos do Pliocénico do Peru expandiu drasticamente o nosso conhecimento do alcance de adaptação da ordem. A abundância de indivíduos, a ausência de outros mamíferos terrestres na rica fauna marinha do local, e o facto de a costa peruana ser um deserto durante o Pliocénico sugerem que vivia na costa e que entrou na água provavelmente para se alimentar de ervas ou algas marinhas.

Os vertebrados encontrados com as T. natans, no que seria uma baía de águas pouco profundas, incluem focas, golfinhos, pinguins e crocodilos. Isso, aliado ao facto de não existirem plantas para comer em terra, sugerem que a T. natans seria um animal de hábitos anfíbios. Algo que se via também na forma do esqueleto:
A morfologia da premaxila, fémur, e vértebras caudais (semelhantes às das lontras e castores) e as proporções dos membros estão de acordo com esta interpretação.

O animal era mais ou menos do tamanho de um urso pardo. Os primeiros fósseis tinham sido descobertos em 1977, e tinha causado alguma surpresa na época que um animal terrestre fosse bastante mais abundante que os animais marinhos, naquele tipo de ambiente. O esqueleto é uma das evidências mais fortes de hábitos aquáticos, sobretudo no que se refere aos membros posteriores, que apresentam uma tíbia com uma dimensão semelhante à do fémur. Nas preguiças terrícolas as tíbias são muito menores que o fémur. Esse tipo de proporções é comum em animais aquáticos que nadam com movimentos vigorosos dos membros posteriores. A cauda apresentava também modificações que sugerem que seria capaz de movimentos para baixo e para cima. O crânio por seu lado mostrava evidências de um focinho semelhante aos dos sirénios (dugongos, manatins e vacas-marinhas). Os membros anteriores são no entanto ainda típicos das preguiças, incuindo as grandes garras (que também existiam nos posteriores). Seria uma criatura estranha, com cabeça de manatim, braços de preguiça, pernas e cauda de lontra.

Os próprios autores do estudo ficaram pasmados com o achado. No comunicado de imprensa que acompanhou esta descoberta, refere-se:
"Eu fiquei totalmente surpreendido", disse McDonald sobre a descoberta. "Temos dito na brincadeira que a nossa próxima viagem será para descobrir a preguiça voadora".

Investigações posteriores, descobriram um total de 5 espécies diferentes de preguiças marinhas, com idades diferentes, entre 7 a 8 milhões de anos atrás, 6 milhões de anos atrás, 5 milhões de anos atrás, 3 a 4 milhões de anos atrás, e finalmente 1.5 milhões de anos atrás. Estes animais formam uma espectacular sequência evolutiva que ilustra a adaptação de um animal terrestre ao meio aquático. As espécies são descritas num artigo um pouco mais recente, de 2004, da autoria de Christian de Muizon e colegas publicado no Journal of Vertebrate Paleontology (ref2). Numa tradução livre do resumo:
A preguiça aquática Thalassocnus encontra-se representada por cinco espécies que viveram ao longo da costa do Peru do Miocénico tardio até ao Pliocénico tardio. Uma comparação detalhada da anatomia craniana e mandibular destas espécies mostra adaptações alimentares diferentes. As três espécies mais antigas de (T. antiquus, T. natans, and T. littoralis) tinham provavelmente um pastar parcial (comedores intermediários ou mistos) e a componente transversa do movimento mandibular era diminuta, ou mesmo inexistente. Alimentavam-se provavelmente de forma parcial de algas ou ervas marinhas que davam à costa, ou em águas pouco profundas (menos de 1m) como indicado pelas estrias abundantes dos seus dentes molares, criadas pela ingestão de areia. As duas espécies mais jovens, (T. carolomartini e T. yaucensis) tinham um pastar mais especializado que as três espécies mais antigas e possuíam uma componente transversa no seu movimento mandibular. Os seu dentes eram quase totalmente desprovidos de estrias. Estas duas espécies alimentavam-se provavelmente de forma exclusiva a profundidades maiores que as espécies mais antigas.

Trata-se de um artigo que lida sobretudo com os crânios. A dentição passa de um tipo de dentes destinados a arrancar folhagem para dentes adaptados a animais que pastam (a tal questão da componente transversa do movimento mandibular). As marcas de areia nos dentes mostram uma sequência de animais que se alimentariam, na forma mais antiga, de algas que davam à costa, nas formas seguintes de algas dentro de água mas a pouca profundidade. A ausência dessas marcas nos animais mais recentes significa que mergulhavam e se alimentavam nos leitos de algas a profundidades relativamente elevadas. As mandíbulas destes animais "esticam" ao longo do tempo, ficando os dentes cada vez mais longe da extremidade da boca, numa convergência notável com os sirénios. Face à evidência de um rico suprimento de vasos sanguíneos nessa região, é de admitir que o focinho seria bastante largo e carnudo. Os ossos do palato evoluiram também por forma a permitir que nas formas mais recentes haja uma separação eficiente entre as vias respiratórias e digestivas, algo necessário para animais que se alimentam debaixo de água.

Esta é uma das melhores sequências evolutivas que já vi. No final do artigo há alguns comentários interessantes sobre o resto do esqueleto. Uma das coisas que me surpreendeu é que as Thalassocnus possuem garras ainda maiores que os as preguiças terrícolas, que fariam inveja ao Freddy Krueger do Pesadelo em Elm Street. Os autores sugerem que as preguiças utilizariam essas garras sobretudo para recolher alimento, mas eu acho mais interessante uma outra possibilidade que eles avançam, que as garras serviriam para o animal se segurar às rochas do fundo marinho. Isso seria necessário pois as preguiças marinhas não possuem os ossos espessos e pesados dos sirénios, que os mantêm no fundo. Nisto as Thalassocnus fariam lembrar as iguanas marinhas das Galápagos. Este artigo, e um outro no mesmo volume, que não vou descrever aqui, dão uma ideia muito razoável do aspecto que estes animais teriam em vida. As formas mais recentes estavam no caminho para um animal marinho verdadeiramente peculiar.

Não deixa de ser fascinante observar as várias estratégias que os animais terrestres desenvolveram na sua evolução para formas aquáticas, bem como o número de vezes que essa transição ocorreu, e o tipo de adaptações com carácter único que surgiram. Os animais evoluem com aquilo que têm "à mão", e não deixa de ser interessante que as preguiças mesmo no mar conservem as suas garras. É realmente pena que tenham desaparecido há um milhão e meio de anos atrás. Infelizmente, não terão conseguido espalhar-se suficientemente para sobreviverem a uma catástrofe natural local ou mudança climática mais dramática. Nisto não são diferentes das baleias, por exemplo, que nos primeiros milhões de anos da sua evolução parecem ter estado limitadas a uma região relativamente pequena na costa do Paquistão.


As preguiças modernas, embora ainda relativamente abundantes, poderão seguir o caminho das suas parentes extintas. Isso é particularmente verdade para a preguiça de coleira, Bradypus torquatus, a que pertence a pequenita (bebé) acima, que existe apenas na Mata Atlântica do Brasil, e cujos números se mantêm a um nível baixo, com um prognóstico de futuro preocupante. Mais informações sobre esta espécie ameaçada podem ser encontradas numa página da autoria da bióloga Vera Lúcia de Oliveira, que faz trabalho de campo para protecção destes animais.

Ficha técnica
A maravilhosa reconstituição da preguiça de Shasta faz parte deste artigo, no blog de Carl Buel.
Imagem no início da contribuição cortesia de Stefan Laube, retirada da Wikimedia Commons, desta página.
Imagem da preguiça de coleira bebé a ser alimentada com leite retirada desta página do ARKive.

Referências
(ref1) C. de Muizon & H. G. McDonald (1995). An aquatic sloth from the Pliocene of Peru. Nature 375, 224 - 227. Laço DOI.
(ref2) CHRISTIAN DE MUIZON, H. GREGORY MCDONALD, RODOLFO SALAS, and MARIO URBINA (2004). THE EVOLUTION OF FEEDING ADAPTATIONS OF THE AQUATIC SLOTH THALASSOCNUS. Journal of Vertebrate Paleontology, vol. 24, no. 2, pages 398-410.

domingo, setembro 10, 2006

Coimbra tem mais encanto... e criacionistas!

Continuo de férias, mas o choque foi tão grande que ainda me sinto apalermado e tinha que colocar isto aqui. O tema do mês na Roda de Ciência é "Internet na Academia e a divulgação da Ciência". Eu pensava não ter tempo para contribuir com algo de jeito, pelo que isto veio de certa forma a calhar. Uma das questões, que pelos vistos não ocorreu aos proponentes do tema, é que os meios académicos não incluem apenas ciência, e podem, por vezes, ser mesmo hostis a certos aspectos da ciência. Este caso veio mostrar isso de forma algo dolorosa. Um jornal português, da imprensa supostamente séria, sentiu a necessidade de publicar uma carta aberta de um indivíduo que defende as teses criacionistas. Nem me atrevo a contaminar este blog com o título desse pasquim, que não voltarei a comprar. O que me deixou realmente aparvalhado foi descobrir que há um feudo criacionista numa vetusta universidade portuguesa. [... ler mais]

Eis uma das pérolas desse texto:

Os criacionistas mostram que as mutações acumuladas, além de não criarem informação genética nova, destroem o genoma. As mutações e a selecção natural operam em informação genética preexistente, estando longe de explicar a origem da vida e a transformação de moléculas em pessoas.

Eis outra:
Os fósseis e as rochas não trazem inscrita a sua antiguidade. Os evolucionistas datam as rochas e os fósseis de acordo com as premissas naturalistas, evolucionistas e uniformitaristas de que partem, impossíveis de validar quanto ao passado distante. As quantidades de isótopos são medidas no presente por cientistas no presente.

Mais uma:
Se milhões de espécies animais tivessem evoluído ao longo de milhões de anos, deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios e não apenas a mão-cheia de exemplos altamente controversos (v.g. Archaeopteryx) com que nos deparamos.

O que eu realmente adoro é esta aqui:
Os criacionistas também estudam biologia, genética, astronomia, astrofísica, geologia, antropologia, paleontologia, etc. Apenas entendem que nessas disciplinas a evolução naturalista é a premissa de que se parte e não a conclusão a que necessariamente se chega depois de seriamente analisadas as evidências. As leis da causalidade, da termodinâmica, da biogénese, das probabilidades, etc., e o princípio antrópico corroboram a criação e não a evolução.

Ao pesquisar na internet encontrei um blog, A Memória Inventada, de Vasco Barreto, que discute aqui esse texto. O jornal em questão não é de consulta livre, mas Vasco Barreto faz uma citação completa do artigo. O autor do texto é Professor de Direito na Universidade de Coimbra, e pelos vistos não é caso único. Se no meio académico a ciência é considerada com um tal desprezo o que esperar do público em geral? Antes de considerar o aspecto da internet na Academia e divulgação da ciência, talvez seja preciso começar pela divulgação da ciência na própria Academia.

Adenda: comentários sobre o mesmo tema na Blogómica.
Adenda: com uma paciência que invejo, Vasco Barreto resolveu rebater algumas das distorções e falsidades dos criacionistas. Ver aqui, e no seu outro blog. Eu continuo a achar que a investida criacionista se trata de uma tentativa de conseguir algum reconhecimento mediático com a promessa de polémica como engodo para os jornais. Mas não vejo interesse na opinião pública, parece interessar menos as pessoas que aquelas iniciativas em que grupos de poucas dezenas de manifestantes se despem para atrair as atenções dos jornais.

Comentários (via Roda de Ciência).

segunda-feira, setembro 04, 2006

O cogitar dos grandes símios

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Esta imagem mostra uma gorila, da espécie Gorilla gorilla, que parece intrigada com algo no chão à sua frente. Os gorilas são de facto animais com capacidades cognitivas avançadas e, tal como os chimpanzés, que discuti aqui numa contribuição anterior, também executam com sucesso as tarefas de deslocamento invisível. Essa capacidade para representação secundária, é comum ainda a um terceiro grupo de antropóides, os orangotangos. Um estudo recente, da autoria de Joseph Call na revista Animal Cognition (ref1) mostrou que as habilidades dos três grupos de antropóides são semelhantes, mesmo quando se estuda uma habilidade algo diferente, a capacidade de fazer inferências por exclusão. A inferência é a capacidade de relacionar um acontecimento visível com um acontecimento imaginado. A inferência por exclusão corresponde a uma variante que consiste em escolher a resposta certa por exclusão das outras alternativas potenciais. [... ler mais]

Eu falei aqui de um estudo desse tipo, a propósito de crianças e cães, mas inúmeras variantes foram testadas num grande número de espécies animais. O artigo de Joseph Call presta especial atenção às possibilidades de "batota". Numa tradução livre do resumo do artigo de Joseph Call:
Este estudo investigou a capacidade de chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos, para fazerem inferências por exclusão usando o procedimento pioneiro de Premack e Premack (Cognition 50:347–362, 1994) com os chimpanzés. Trinta antropóides foram confrontados com duas peças de fruta diferentes (banana vs, uva) numa plataforma, e cobertos com recipientes idênticos. Uma das peças era retirada do recipiente e colocada entre os dois recipientes por forma a que os sujeitos os pudessem ver. Após remover esta peça, os sujeitos podiam selecionar um entre os dois recipientes.

Eis aqui uma imagem do dispositivo experimental, com um orangotango como sujeito do teste.

A experiência é conceptualmente mais simples que o deslocamento invisível, embora seja mais complicada que o deslocamento visível. Aqui, em vez de se procurar um objecto que se viu esconder, tem que se evitar o recipiente vazio. Os símios viam o objecto a ser retirado, mas não viam que o recipiente ficava vazio. Isso era algo que tinham que imaginar, inferindo por exclusão, daí a designação do teste.
Na experiência 1, os antropóides preferiram nas suas escolhas o recipiente que continha o item que o investigador não tinha retirado, em particular se o sujeitos viam o investigador retirar o item do recipiente (mas sem verem o recipiente vazio). A experiência 3 em que o alimento era retirado de um dos recipientes por trás de uma barreira confirmou estes resultados.

Ou seja, os antropóides em geral escolhiam a caixa de onde não tinha sido retirado o objecto. Ora como se referiu nas contribuições anteriores por vezes os resultados positivos podem advir de estratégias associativas simples. Neste caso os antropóides poderiam simplesmente selecionar o recipiente não tocado pelo investigador. O autor do artigo fez por isso uma outra variante da experiência.
Contrastando com estes resultados, o sujeitos actuaram a níveis ao acaso quando um estímulo (um bocado de plástico colorido) correspondia ao item que tinha sido retirado.

Os animais tinham primeiro aprendido a associar uma determinada cor do plástico a banana por exemplo. Esta era uma tarefa difícil e os antropóides escolhiam ao acaso, falhando metade das vezes, mostrando que não seguiam nenhuma estratégia de associação simples. O autor foi ainda mais "mauzinho" e em vez de bocados de plástico utilizou bocados de outros alimentos como maçãs e amendoins que os antropoides tinham aprendido a associar a bananas ou uvas. Os resultados não se alteraram significativamente.
Estes resultados indicam que os antropóides fizeram inferências, não aprenderam simplesmente a usar uma pista discriminativa para evitar o recipiente vazio. Os antropóides perceberam e trataram o item removido pelo investigador como sendo exactamente o mesmo que tinha sido escondido debaixo do recipiente. Os resultados sugerem uma relação positiva entre a idade e capacidade de fazer inferências, independente da capacidade de memória, mas sem diferenças nas espécies.

Chimpanzés, gorilas, orangotangos, bonobos, todos obtiveram resultados semelhantes, e em todas as espécies os animais muito jovens (menos de 8 anos) cometiam mais erros. Este é um resultado curioso, pois indica que nos antropóides a capacidade de interpretar correctamente o deslocamento invisível aparece muito mais cedo que a capacidade de inferir. O facto de todas as espécies terem mostrado um desempenho semelhante sugere que o antepassado comum mais recente destes animais já possuiria a capacidade, há pelo menos 14 milhões de anos. Como eu referi, há imensas variantes deste tipo de estudos, e alguns animais, como os golfinhos e focas, conseguem por vezes resultados "positivos", mas em testes que exigem um treino intensivo. Só após esse período de treino alargados se testam as capacidade de inferência desses animais. Esse não foi o caso neste estudo, e a questão das capacidades dos animais marinhos mostrarem inferências por exclusão num estudo deste tipo, sem exisitr um treino intensivo por trás, ainda está em aberto.

Ficha técnica
Imagem da gorila no início da contribuição cortesia de Aaron Logan, retirada da sua galeria LIGHTmatter.

Referências
(ref1) Josep Call (2006). Inferences by exclusion in the great apes: the effect of age and species. Animal Cognition. Laço DOI

sábado, setembro 02, 2006

O pequeno cupido dos musgos

Esta criatura é um colêmbolo, da espécie Isotoma caerulea. Os colêmbolos são pequenos artrópodes com 6 patas, parentes próximos dos insectos. São animais pequeníssimos, com comprimentos da ordem do milímetro, mas com uma densidade populacional muitas vezes assombrosa, com valores que podem atingir cerca de 2 milhões indivíduos por metro cúbico de solo. Os colêmbolos têm uma grande importância ecológica e o seu número e diversidade é um bom indicador da saúde dos solos. Descobriu-se agora que os colêmbolos desempenham para algumas plantas um papel semelhante ao das abelhas para as plantas com flor. [... ler mais]

As algas antepassadas das plantas terrestres utilizavam espermatozóides para a sua reprodução, que nadavam entre as estruturas masculinas e femininas no meio aquático para assegurarem a fertilização. As plantas de famílias "modernas" como as angiospérmicas e as gimnospérmicas são fertilizadas por pólen, resistente à secura e que é transportado pelo vento ou pelos animais, mas alguma plantas terrestres mais "primitivas" como fetos, cavalinhas, e musgos, ainda são fertilizadas por espermatozóides. Mostra-se abaixo o exemplo de um tipo comum de musgo, espécie Bryum argenteum, em que os espermatozóides se podem ver a nadarem livremente à direita.

O facto da reprodução dos musgos depender de uma camada contínua de água líquida colocava algumas questões curiosas, pois os espermatozóides não são capazes de percorrer mais do que alguns centímetros, e muitas vezes as extensões de musgo estão bastante afastadas entre si. Ora é aí que entram os colêmbolos, e outros pequenos artrópodes como os ácaros. O trabalho que investiga estas questões, da autoria de Nils Cronberg e colega,s foi publicado num muito curto, mas interessante, artigo na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Entre as plantas com flor, os animais agem muitas vezes como polinizadores. Mostramos que bocados de musgo fértil atraem colêmbolos e ácaros, que por sua vez transportam espermatozóides do musgo, desse modo aumentando o processo de fertilização. Pensava-se anteriormente que a fertilização dos musgos dependia da capacidade do espermatozóides nadarem através de uma camada contínua da água líquida. O papel dos microartrópodes na fertilização do musgo assemelha-se ao papel dos animais como os polinizadores das plantas com flor, mas pode ser muito mais antigo do ponto de vista evlutivo devido à antiguidade dos organismos envolvidos.

Os autores do estudo usaram uma espécie de pequenas estufas e em cada uma colocaram uma extensão de musgo do sexo masculino e outra do sexo feminino. As distâncias entre as duas parcelas de musgo podiam ter três valores: 0 cm (extensões contíguas), 2 cm e 4 cm. O espaço entre os pequenos canteiros de musgo era coberto com material absorvente, servindo como barreira à propagação dos espermatozóides. De facto, os observadores verificaram que, na ausência de microartrópodes, apenas no caso em que as parcelas de musgo eram contíguas se processava a fertilização, e consequente produção de esporos. Os autores estudaram então o que se passava quando colocavam na estufa colêmbolos da espécie Isotoma caerulea, ou ácaros das espécies Scutovertex minutus e S. sculptus. Eis em baixo uma imagem do dispositivo experimental com colêmbolos (indicados por setas) a moverem-se entre e sobre os canteiros de musgo.

Nils Cronberg e colegas verificaram que neste caso se dava fertilização mesmo quando as parcelas de musgo estavam afastadas. Esta é uma clara indicação de que os microartrópodes transportam de alguma forma os espermatozóides, provavelmente nas suas cutículas. Notaram ainda que a taxa de fertilização era maior no caso da separação de 4cm para a experiência com colêmbolos do que para a experiência com os ácaros, o que se explica pela muito maior mobilidade dos colêmbolos.

Os investigadores perguntaram-se então se o processo seria puramente passivo, com visitas ao acaso às estruturas sexuais, ou se haveria um papel mais activo, semelhante ao que ocorre com polinizadores como as abelhas. Os autores verificaram que podendo escolher entre parcelas férteis e não férteis os colêmbolos preferiam claramente as parcelas férteis (com concentrações de indivíduos até cinco vezes maiores). Os autores referem não saber a razão exacta mas sugerem que se deve ao facto de as parcelas férteis segregarem sucrose, amido, ácidos gordos e uma espécie de goma.

O mais interessante é que musgos e outras plantas semelhantes, e os colêmbolos e ácaros, poderão ter tido este tipo de relação 300 milhões de anos antes do aparecimento das abelhas. Afinal, as angiospérmicas apenas aparecem no registo fóssil há qualquer coisa como 140 milhões de anos, enquanto plantas terrestres representativas dos musgos e cavalinhas surgiram há mais de 440 milhões da anos. Os pequeninos colêmbolos merecem por isso mais umas quantas imagens.



Ficha técnica
As imagens desta contribuição foram retiradas de um filme de Hans Berggren que se pode puxar daqui, nas páginas da Science.

Referências
(ref1) Nils Cronberg, Rayna Natcheva, Katarina Hedlund (2006). Microarthropods Mediate Sperm Transfer in Mosses. Science Vol. 313. no. 5791, p. 1255. Laço DOI.